terça-feira, 7 de dezembro de 2010

"Artisticamente imitada: A vida!..."

     "Ando tão apertada de costura que se o dia tivesse vinte e cinco horas ainda sobrariam três ou quatro botões para pregar. Essa vida anda depressa demais. Quando menos imagino, o dia já se foi, esse desaforado!
     Vivo para ajeitar as mulheres. Prepará-las para ocasiões. São jantares, casamentos, formaturas. Vivo para ajudar a esconder os defeitos(...) Em situações mais raras saliento as virtudes.(...)
     Eu me exercito no ofício de costurar tecidos desde os 16 anos. Herdei o dom de minha mãe, que por sua vez o herdou de minha avó. Uma ancestralidade!
    Fazer roupas é um jeito de ver os bastidores dos acontecimentos. Enquanto todo mundo vê a roupa por fora, eu a vejo por dentro, nos seus avessos. O que vejo do tecido é sua sustentação primeira, sua trama. Um tecido só é bonito de verdade à medida que possui um avesso que o sustenta. A beleza externa só tem sentido porque há um alicerce no contraponto. Interessante, mas as pessoas são semelhantes aos tecidos. Se não há uma trama de sustentação, não há beleza que possa sobreviver aos desmandos do mundo.
(...)
     Mulheres por dentro e por fora. Mistérios que me despertam coragem para continuar costurando. Minha máquina é minha realidade. É dela que parto para os meus sonhos. O que materialmente corto, ajusto e costuro, de alguma forma repercute dentro de mim. Eu toco constantemente os bastidores da vida. E é a partir desses avessos que construo pontes que me levam para outros mundos.
     Eu costuro a realidade com linhas de sonhos. Imagino. E no ato de imaginar sou retirada para dançar, repito a sobremesa, comento a elegância dos adornos; troco olhares com o garçom. Rodopio enquanto danço pelo salão; recebo elogios pela escolha do penteado, a seda do vestido. Tudo isso sem sair de minha máquina. As linhas que entrelaçam os tecidos suturam o meu coração a realidades inexistentes.
     E por isso sou especialista em ver além das aparências. Sei do que os tecidos são capazes e as viagens que proporcionam. Se não tivesse essa habilidade não me restaria muita coisa. A vida na castidade, o corpo preservado, as pernas sem destinos, os cabelos sem fitas, o pescoço sem colares. A vida mais perfeita e absoluta normalidade. Nenhum risco no calendário, nenhum dia convidado a sair do esquecimento, nenhum convite pregado na geladeira, nada que anuncie um sábado com aspecto de primavera: horário marcado no salão, atenção especial para um corte de saia e blusa, retoque de tinta no sapato de ocasião.
      Eu viajo é nas cores de tecidos. Quilômetros e quilômetros de linhas que me levam pelo mundo afora. O meu porto é a minha máquina.(...)
De Belo Horizonte a Paris eu levo um segundo. Não pago passagem, nem tenho problema com excesso de bagagem. Eu sou leve. Esqueço as roupas. Volto pra buscar. Troco a cena. Mudo o clima.
      Faço vir a chuva para dormir logo. Invoco o sol para o meu mergulho e imagino a neve para amenizar o calor. Acendo lareiras nas noites frias; encontro a promissória perdida; ganho na loteria, e divido o prêmio com os pobres.
    Na angústia adio a decisão. Na agonia antecipo o fim. Na alegria prolongo o início. O tempo não tem poder sobre minha velha máquina de costura. Ela o desafia constantemente. Desafio que demonstra intimidade, parceria. Minhas pernas não andam, mas chegam. Chegam aos lugares que aos sonhos pertencem.
(...)
      O ritual do sepultamento terminou ali, na ressurreição que a máquina de costura me proporcionou.
    Há coisas que a morte não sepulta porque pertencem à vida eternizada(...)"

(Mulheres de Aço e de Flores, de Fábio de Melo; 15ª edição, páginas111-121: A costureira; Gente Editora)

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