quarta-feira, 4 de agosto de 2010

"Construções..."

Texto extraído do livro "Perdas & Ganhos", de Lya Luft, 28ª edição, páginas 21-23, Editora Record. 2003.


"A marca no flanco"


      "O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
      É uma idéia assustadora: vivemos segundo o nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo.
      E o que configura essa expectativa?
   Ela se inaugura na infância, com suas carências sem sempre explicáveis. Mesmo se fomos amados, sofremos de uma insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos a fatalidades e imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos de criar barreiras e ao mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e ainda nos espera. Toda essa trama de encontro e separação, terror êxtase encadeados, matéria da nossa existência, começa antes de nascermos.
      Mas não somos apenas levados à revelia numa torrente.
      Somos participantes.
    Nisso reside nossa possível tragédia: o desperdício de uma vida com seus talentos truncados se não conseguirmos ver ou não tivermos audácia para mudar para melhor-em qualquer momento, e em qualquer idade.
    A elaboração desse "nós" iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que é coroamento embora em geral visto como deterioração.
    Nesse trabalho nossa mão se junta às dos muitos que nos formam. Libertando-nos deles com amadurecimento, vamos montando uma figura: quem queremos ser, quem pensamos que devemos ser- quem achamos que merecemos ser.
     Nessa casa, a casa da alma e a casa do corpo, não seremos apenas fantoches que vagam mas guerreiros que pensam e decidem.
Constituir um ser humano, um nós, é trabalho que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos malfeitos, rachaduras, Quem sabe um pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varanda para o sol.
     O que se produzir-casa habitável ou ruína estéril- será a soma do que pensam e pensamos de nós, do que nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, sinete, essa marca. Porém isso ainda seria simples demais: nessa argamassa misturam-se boa-vontade e equívocos, sedução e celebração, palavras amorosas e convites recusados. Participamos de uma singular dança de máscaras sobrepostas, atrás das quais somos o objeto da nossa própria inquietação. Nem inteiramente vítimas nem totalmente senhores, cada momento de cada dia um desafio.
       Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta. Nos faz humanos.
    No prazo de minha existência completarei o projeto que me foi proposto, aos poucos tomando conta dessa tela e do pincel.
      Nos primeiros anos quase tudo foi obra do ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação.
      Logo não terei mais a desculpa dos outros: pai e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condição humana que só quando adultos reconhecemos. Por fim havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer.
       E eu...e eu?
    Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que nos geraram e criam; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança."

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